Momentos bons e menos bons. Nunca maus. - na farmácia de serviço 25.9.13 «Revi há dias a costureira onde costumava levar a roupa a arranjar quando ainda morava na cidade. Eu frequentava o shopping onde ela tem um pequeno gabinete de costura e sempre que lá ia, mesmo sem precisar do seu serviço, quase sempre conversávamos. É uma senhora simpática e terna, com um sorriso luminoso, que desta vez, esperando uma recepção calorosa, depois de meses sem nos vermos, encontrei vagarosa, triste e distante. Sabia que o negócio não rendia o esperado e por isso indaguei. Ela ergueu lentamente os grandes olhos, uns olhos aveludados e muito bonitos, para me resumir a razão da funda sombra. O marido morrera-lhe há dois meses, sem mais nem menos, sem doença curta nem prolongada, sem sinais de alarme, assim sem aviso prévio, um enfarte que o tombou no trabalho e adeus para sempre. "É um vazio, uma dor que não sei explicar", diz-me. E as saudades, que não sabe onde as alojar, andam em redor dela como um vendaval, como uma tempestade constante, jorrando do buraco no peito, que é ao mesmo tempo tão vazio e tão denso. Conta-me que, ao olhar para esse casamento de mais de trinta anos, que com outro tanto sonhava ainda, nunca teve maus momentos. "Só tive momentos bons e menos bons, nunca maus". E no meio das lágrimas consegue sorrir e os seus magníficos olhos de veludo iluminam-se porque ela sabia, e nunca desperdiçou esse saber, que estava a viver o privilégio do amor e isso não é fortuna que se esbanje em ninharias. Viver um grande amor, aquele amor que sabemos que é muito provavelmente o maior da nossa vida, é algo do nível do divino. É sair-nos a lotaria sem termos comprado o bilhete. É marcar o golo que decide o campeonato sem perceber de futebol. É ficar em forma sem fazer ginástica. Amar muito e ser muito amado de volta é a taluda, a sorte grande, algo que nos perpassa e transcende e arrebata e que, com outra sorte igual, nos dá outros amores sublimes e deslumbrantes, como os filhos. A costureira de olhos doces que se deita todas as noites a chorar de saudades tem essa glória no coração. Morreu o seu amor, mas deixou-a com tantas saudades que não sabe onde as guardar e deixou-lhe a alma cheia de bons momentos, alguns menos bons e nenhum mau. Porque ela, que perdeu o seu amor aos 52 anos, que ficou com duas filhas e netos para consolar, tem esse lugar quente e macio que é só dos dois e que nada no mundo lhes tira e que toda a vida, a vida que ela vai viver sem ele contra vontade, a vai confortar. Ela sabia que o amor da nossa vida é a lotaria, o golo de ouro, o músculo que nunca se cansa, a nossa casa, o nosso sangue, o paraíso que podemos colher em beijos e abraços. Momentos bons e menos bons, nunca maus. Quando se adormece e acorda ao lado do amor da nossa vida, isto devia ser assim simples.» Fármácia de Serviço, um dos melhores blogs que cresce por aí!
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