Há coisas que não se explicam, mas descrevem-se

Sabem, há um sentimento diário que me assola: estou a viver uma fase única e que vou recordar como "naquele tempo é que era".

Naquele tempo em que acordava de manhã e abria a janela e a paisagem eram montanhas, numa espécie de cerca, numa espécie de canto do mundo incomparável. Nelas moravam pássaros que chilreavam o dia todo, um som que enchia a casa, que me fazia sentir em plena harmonia com a natureza. Ou então, não havia pássaros, mas as montanhas enchiam-se de branco-neve, as árvores não tinham verde nem castanho, só branco.

Naquele tempo em que morava numa casa bonita, grande e alugada. Onde não me importava (muito) se algo avariasse, onde a varanda me fazia sonhar com os dias que passei sentada numa cadeira de palha, a respirar o ar dos Alpes, que já era inconfundível. A mesma casa que tinha como decoração de paredes as janelas grandes e cheias de luz, sem cortinas, sem sombras, sem filtros.

Naquele tempo em que tinha uma bicicleta cor de rosa, com um cesto. Onde não havia um carro, onde eu era tão mais feliz quanto mais sol ou quanto mais neve houvesse. Naquele tempo em que sorria sozinha nos percursos de bicicleta, só e apenas porque me sentia feliz e tudo o que me rodeava era bonito, muito mais bonito do que alguma vez vira antes, e todos os dias mais.

Naquele tempo em que havia um amor todos os dias mais sólido, mais firme, mais leve e mais livre. Porque era nesse mesmo tempo em que a certeza de que todo o passado convergia para ali, onde fazia sentido, pela liberdade, pela lealdade, pela simplificação.

Naquele tempo em que a casa era uma porta aberta e onde se falava inglês e se aprendia alemão. Onde todos os dias se aprendia mais, se estudava mais, se partilhava mais. Onde o Skype era a porta aberta para o lado de lá, dos nossos, e por onde aprendíamos coisas dos dias e das pessoas, coisas da vida. A internet permitia uma proximidade que não se imaginara, permitia fazer surpresas, oferecer presentes e resolver conflitos melhor do que se as pernas nos tremessem na presença física de quem nos aparecia no ecrã.

Naquele tempo em que ninguém esperava nada de nós porque tínhamos 20 anos e aos 20 temos tempo para falhar 20 vezes, aos 20 temos muitas portas abertas. O mesmo tempo em que a família não procurava a nossa ajuda, com tudo o de bom e de mau que isso acarreta. Era o tempo do tempo, da paciência, da vivacidade, da calma.

Naquele tempo em que tínhamos tempo para lavar roupa à mão, passar o fim de semana entre planos para comida saudável e exercício no caminho que nos levava ao lago. Aquele lago. Onde moram pássaros e peixes, o sol queima, o vento alivia e as montanhas têm neve.

Naquele tempo em que não nos preocupávamos se sobrava pouco, desde que sobrasse porque novos ventos viriam. Naquele tempo em que a esperança era tudo e enchia os dias. Em que os sonhos extravasavam o coração e os vizinhos, velhinhos e companheiros nos inspiravam o futuro.

Naquele tempo em que vivi o sonho de menina de voar, de cruzar fronteiras à mesma velocidade que um passarinho pousava e partia da minha varanda. De morar noutro lugar, porque o tempo é curto, porque esta vida é só uma e o prazo longo conta tanto como o curto. Porque há um mundo que nunca pisaremos por completo e porque os horizontes só crescem quando desequilibramos a balança.

Foi o cheiro, o chilrear dos pássaros e vista da varanda que equilibraram a balança. E sim, era assim tão perfeito. Naquele tempo eu era tão feliz.

Se podia morar aqui para sempre? Podia, mas não era tão divertido.


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